Bebês para abate
Horrorizado? Não esteja. Terminar com a vida de um recém-nascido indesejado não é uma originalidadePor João Pereira Coutinho
SE UM feto pode ser abortado, por que não um recém-nascido? Boa pergunta. Perigosa pergunta. Os filósofos Alberto Giubilini e Francesca Minerva tentaram responder positivamente a ela no reputado "Journal of Medical Ethics".
A Europa estremeceu de horror. Pior: choveram ameaças de morte sobre os pobres pesquisadores.
Sem razão. Li o ensaio ("After-Abortion: Why Should the Baby Live?"; aborto pós-nascimento: por que deve o bebê viver?) e aplaudo o rigor científico do mesmo. Que parte de premissas razoáveis: em muitas sociedades do Ocidente, o aborto é livre por mera vontade dos pais. Tradução: não é preciso invocar nenhuma razão médica para terminar a gravidez. Basta querer -e fazer.
Essa autonomia radical, que é a base da posição progressista sobre o assunto, deve ser extensível ao recém-nascido, diz o ensaio, sobretudo quando há doenças ou deformações que não foram detectadas durante a gestação. Exemplos? Vários.
A asfixia perinatal, que ocorre durante a gravidez, o parto ou até depois, é um deles e pode deixar danos físicos ou mentais irrecuperáveis na saúde da criança.
A síndrome Treacher-Collins é outro, responsável por malformações craniofaciais que, dizem os pesquisadores, raramente são rastreadas pelos progenitores. Sem falar da doença de Down: olhando para os registros de 18 países europeus, Giubilini e Minerva afirmam que, entre 2005 e 2009, só 64% dos casos de Down foram diagnosticados.
Por outras palavras: nasceram 1.700 crianças com o distúrbio; 1.700 crianças que, em sua maioria, não teriam sequer visto a luz do dia se os pais soubessem a tempo.
Horrorizado, leitor? Não esteja. Terminar com a vida de um recém-nascido indesejado não é uma originalidade: nem na história humana, nem na história do presente.
Na Holanda, por exemplo, o Protocolo Groningen, a que os pesquisadores também fazem referência, já permite que crianças com doenças ou sofrimentos insuportáveis sejam "eutanizadas" por vontade dos pais e aconselhamento do médico.
A grande diferença entre o caso holandês e a proposta filosófica de Giubilini e Minerva é que o aborto pós-nascimento não é propriamente uma "eutanásia". Porque não é a vontade da criança que deve ser respeitada; é a vontade dos pais. Como afirmam os pesquisadores, o aborto pós-nascimento considera que a vontade das pessoas atuais é superior aos hipotéticos interesses de hipotéticas pessoas potenciais.
Também por isso o aborto pós-nascimento não pode ser confundido com o "infanticídio". Para haver um "infanticídio", escrevem eles, é preciso haver uma "pessoa" no sentido moral do termo, ou seja, alguém que atribui à sua existência algum valor, considerando o fim dessa existência uma perda real.
Mas o feto não é uma "pessoa" no sentido moral; e um recém-nascido não é assim tão diferente de um feto: ambos podem ser humanos, sem dúvida, mas nenhum deles atribui à sua existência qualquer valor particular.
Moral da história? O ensaio de Giubilini e Minerva é importante porque leva até as últimas consequências as premissas progressistas do debate sobre o aborto.
Sim, são raríssimas as sociedades contemporâneas que contemplam a possibilidade de legalizar o aborto pós-nascimento. Pelo menos por enquanto.
No entanto, o debate sobre o aborto será sempre um debate entre aqueles que defendem a autonomia dos progenitores sobre a inviolabilidade da criança e aqueles que defendem a inviolabilidade da criança perante a autonomia dos progenitores.
Pessoalmente, a inviolabilidade da criança sempre me pareceu superior à autonomia dos pais, exceto nos casos em que a gravidez representa ameaça para a saúde física ou psíquica da mãe. Só quando duas vidas estão em conflito é possível decidir salvar uma delas.
Giubilini e Minerva discordam. E limitam-se a esticar as premissas "autonomistas" do aborto livre de uma forma intelectualmente coerente: os argumentos a favor do aborto do feto podem e devem ser aplicados à morte de um recém-nascido indesejado.
Que isso perturbe as consciências, a começar pelas progressistas, eis um problema a que os próprios progressistas terão de responder.
Fonte: Folha de S. Paulo em 6 de março de 2012
Nenhum comentário:
Postar um comentário